domingo, 2 de novembro de 2008

a escrita do deus


"Um homem se confunde, gradualmente, com a forma de seu destino; um homem é, afinal, suas circunstâncias".
"No firmamento há mudança. A montanha e a estrela são indivíduos e os indivíduos caducam".
"Julgou intuir, obscuramente, que o passado é a substância de que é feito o tempo; por isso é que este se torna passado imediatamente".

Trechos esparsos de O Aleph, de Borges.

E eu apenas sou. Uma pessoa como tantas outras que sorri pouco nos últimos tempos. Não que tenha me tornado uma pessoa triste. É apenas um momento de introspecção. Não consigo achar tudo isso de especial que outras pessoas acham em si mesmas.
Mas não sou mais aquela que era. Não és mais aquela que eras. Não nos reconhecemos mais. E não porque meu rosto tenha mudado, ou minha voz se tenha calado, ainda não tenho rugas nas mãos, mas nos sabemos mais velhas. E nem por isso mais sábias. Tu não te enxergas mais no reflexo dos meus olhos porque meu olhar mudou. Eu vejo que mudou e não sei dizer como mudou. Havia uma semelhança entre nós que nos aproximava e que virou diferença, que nos afasta. Ou talvez, finalmente, tenhamos ficado tão iguais que isso seja o que nos repele.
As coisas mundanas me atraem cada vez menos e eu represento isso em atos de consumismo puro. Não que eu queira todas essas coisas, muito menos que precise delas, o consumir é, estranhamente, um ato de desprendimento. Nada importa. Ainda somos e vivemos como nossos pais e isso me faz chorar lágrimas de sangue. Os líderes estão todos mortos. Existem mitos e, mitos que são, são todos falsos. Ou apenas falácias. Mil e uma noites. De vazio e insônia, embora eu consiga dormir, embora eu durma cada vez mais (mas apenas aos fins de semana, pois durante a semana sou escrava). És escrava, mais ainda do que eu. Pensas que tens as rédeas de um destino que não te pertence e que te comanda através de subterfúgios divinos. Ou diabólicos. Não seria, pois, o Diabo, o Mr. Hyde de Deus? (Já questionava Mário Quintana) Uma única moeda tem duas faces assim como tu tens duas faces e fazes crer que oferece-as para aquele que te agride, quando na verdade o que fazes é revidar, e sempre da pior maneira. A verdade é que nada disso seria realmente importante para ti se houvesse o que fosse realmente importante para ti. Ou para mim.
No momento eu apenas não consigo querer, quando o querer é o que nos move. Te move. Me move. Não me movo. Não consigo. Na verdade, o que eu quero é bem simples, e chama-se ausência. Quero estar ausente. De mim e do mundo. Especialmente do mundo. Um voltar-se para dentro. Abrir os olhos e primeiro ver o sangue, tanto sangue dentro de mim mesma, e depois enxergar o que há de luz e de escuridão neste corpo que é meu por essa vida, apenas. O meu corpo, um corpo perfeitamente perfeito que Deus me deu e que eu não cuido da maneira amorosa como deveria. Não cuidamos todos. Fazemos do corpo um receptáculo de tudo aquilo de ruim que dizemos não querer. E, no entanto, aparentemente, queremos.
Não há capim cheiroso que cure o mau hálito da maledicência. Não há amaciante que torne menos calejadas as mãos daqueles que juntam as pedras do chão. Os cães ladram e a caravana mata-os. Apedreja-os. Impede-os de serem aquilo que são. Impede-os de cumprirem os desígnios de Deus. Ou de Alá. Embora exista apenas um Deus. O UM Deus. Ou a inexistência de toda e qualquer deidade.
Fato é que de mistérios o mundo anda em falta.

5 comentários:

Anônimo disse...

Pois sim, Dona Vica: forte. Duro. Sangrento. Por outro lado, sublime, rompante.

Nao sei o contexto do escrito (certamente ha um).

Mas, cabe dizer, ou apostar: se fosse EU o alvo, me sentiria profundamente atingido.

(Trata-se de um grande elogio, acho que deu para notar!)

Vica disse...

Obrigada pelo elogio, G.D. Há mais de um contexto para o texto escrito. O alvo: eu mesma. E também outras pessoas.

Anônimo disse...

Lindo Vica.
bem um momento meu....
Sorrisos só quando forem espontâneos e especiais
beijos

Faxina

Anônimo disse...

que incrivel isso. vim aqui agora, depois do teu comentario no meu blog. parece que falamos de sentimentos bem parecidos. é, temos que arrancar, vica. mas como?

Vica disse...

Como se faz pra arrancar é o que estou tentando descobrir...