quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Untitled 5


Talvez eu ainda mude de ideia, claro. Quando a morte estiver ainda mais perto de mim, quando eu sentir seu hálito na minha nuca, talvez eu volte a acreditar em eternidade. Mas agora não.

Tudo isso eu pensava enquanto arrumava minha mala. Enquanto tentava pensar se levava este ou aquele anel, este ou aquele vestido. Maquiagem? Deveria ir ao cabeleireiro? Que ridícula! Uma velha, uma anciã, preocupando-se com vaidades. Mas a vaidade faz parte da dignidade feminina, e eu não conseguia fugir disso. Marquei hora no salão.

Fazia já alguns meses que eu não viajava de avião. Sempre tive medo. Sempre. Mas isso nunca me impediu. Gostava mais de viajar do que tinha medo. Sempre esquecia de ser ateia quando o avião começava a correr na pista: “meu deus, por favor, me proteja, que o avião não caia, que ninguém aqui morra hoje, amén”. E essa seria uma viagem longa. Acabei de verificar que estamos no mesmo país, mas não no mesmo horário.

- “Me conta! Me conta tudo!”

Assim era o cabeleireiro. Aquela alegria própria dos gays, que é só deles, porque a maioria das mulheres, mesmo as mais felizes, têm sempre uma certa amargura dentro de si. Ficou entusiasmadíssimo com a minha história, a minha viagem, o “reencontro com o primeiro amor”. Juro que encheu os olhos de lágrimas. Eu só dei algumas risadas discretas. Não sentia toda essa emoção.

Devo confessar que sentia um misto de mágoa e saudade. Saudade de algo que já não existia mais, não daquela pessoa. Daquele homem. Daquele velho, ancião. Que eu sequer conhecia, se fosse ser racional o bastante, tinha que admitir que depois de mais de 40 anos, eu sequer sei quem ele é.

Cabelos cortados, unhas feitas, mala pronta, banho tomado, roupas limpas, meu neto me levará até o aeroporto. Viro crente outra vez: “seja o que Deus quiser”.

A filha achava-o gagá. Senil, pobre coitado. Já quase sem juízo, a um passo da interdição. Mas ele não conseguia deixar de pensar nela, naquela namorada de tantos anos atrás, e de chamá-la, e de sentir que precisava vê-la, como se tivesse uma dívida pendente. Era isso: uma dívida pendente. Ele magoara seu primeiro amor, ele partira um coração sem pensar muito no assunto, e agora via (ou ao menos achava que) não podia ter feito aquilo. Que a providência não aceitaria seu ingresso nos céus se aquele mal não fosse remediado.

Quem ele queria enganar? Não acreditava em Deus, paraíso, providência. Mas sentia que era necessário remediar aquele mal. Pensava no quanto poderia estar sendo um velho ridículo, decadente, talvez ela mal lembrasse dele, talvez não se importasse mais (esperava que não se importasse mais). Quem sabe toda essa história não passasse de um desejo de um velho moribundo de reencontrar seu primeiro amor e tentar reviver a juventude?

Agora era tarde para voltar atrás, ela já estava a caminho. Só lhe restava esperar, e os dias no hospital eram lentos, muito lentos.

No avião sentou-se ao lado de um homem que aparentava ter a sua idade, bem como tinha um rosto familiar. Deixou o pensamento ir embora. Conhecera tantas pessoas durante a vida que, no fim, todo mundo parecia familiar. Afivelou o cinto, ajeitou-se naquela cadeirinha de bebê (como as poltronas de avião tinham encolhido conforme os anos foram passando!), pegou um livro da bolsa e começou a ler.

Antigamente daria um bom dia ou um boa tarde, mas agora não perdia mais tempo com estranhos e talvez fosse por isso que o mundo estava do jeito que estava, com as pessoas cada vez mais grosseiras e egoístas. Boas maneiras eram coisa de um passado muito, muito distante.


quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Untitled 4


Poderia dizer que nossa juventude foi conturbada, mas é mentira. Sempre fomos privilegiados, ainda que não necessariamente ricos. Nosso relacionamento é que foi conturbado, intenso, cheio de altos e baixos típicos de quem é muito jovem.

A começar pela nossa primeira vez. Você bebeu para tomar coragem, e dormiu. Eu não tinha muita experiência, embora tivesse mais do que você. Fiquei a te admirar, dormindo no chão da sala dos seus pais, sob a luz da lua. Um silêncio, e eu sem saber se ia embora, se te acordava, se simplesmente ficava ali.

Depois seus pais me levaram em casa. E eu voltei mais e mais vezes. Tantos anos. 6 anos. Uma eternidade quando se é jovem. Eu achei que minha juventude tinha acabado quando nos separamos. Ainda na faculdade, achamos uma sala vazia para conversar. Dissemos as mesmas coisas, derramamos as mesmas lágrimas, e foi cada um para um lado, sabendo que ainda teríamos tempo ali, naqueles corredores, naquelas salas, para nos encontrarmos todos os dias.

Na cantina, no ponto de ônibus, sempre um sorriso triste e um aceno. E depois aqueles deslizes, as fofocas, as traições, as brigas, as mentiras. Nunca conheci alguém que mentisse tanto e tão mal. Sempre li dentro dos seus olhos, e você sabia que eu sabia. Mentia e sabia que eu sabia. Tinha vergonha, mas mentia do mesmo jeito.

Pensando nisso agora, consigo lembrar de tudo. De quando você roubou uma mulher de papelão de uma banca de jornais, capa de uma revista de mulheres nuas, para “decorar” seu quarto. Você e todos os amigos tiraram fotos com a mulher de papelão. Ridículos. E eu ria de tudo.

Depois também chorei de tudo. De quando você viajou sem mim e voltou com fotos estranhas, e eu achei os negativos onde você estava abraçado em outra. Ou quando você me apresentou à outra. E eu tinha uma faca de caça na bolsa e quis usá-la em você. Chorei porque você me fez ter vontade de matá-lo. Chorei porque você me magoou. Chorei porque você era tão egoísta que não foi capaz de perceber tudo isso. E então ouvi de você: “você não pára de chorar, não aguento mais!”.

Nunca as coisas poderiam ser lindas e perfeitas porque nossas vidas não eram um filme. Eu fiz questão de ensinar meu filho e meu neto a nunca magoarem ninguém, principalmente as mulheres que eles amassem ou achassem amar. Creio ter conseguido, mas não sei se um dia saberei. Creio que consegui porque meu marido nunca me magoou propositalmente. Sempre pediu desculpas por qualquer deslize, o mínimo que fosse. Sempre preocupou-se em mostrar que me amava, durante todos os dias que estivemos juntos. Muito mais dias do que todos aqueles 6 anos em que estive com você.

Mas quando somos velhos não acreditamos mais em eternidade. E nem a sentimos.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Untitled 3


Sempre que pensava nele, sentia uma pontada no coração. Como a ausência do meu marido me doía. Dói. Haveria de doer sempre. Uma dorzinha chata, que vai e volta, incomoda, mas não chega a ser de enlouquecer. Sei que se ele estivesse aqui, iria comigo. Ia sempre comigo a todo lado. Me deixava sozinha, mas encontrava uma maneira de estar sempre presente.

O homem dos olhos castanhos. O único par de olhos castanhos que eu amei. Meu filho e meu neto têm os meus olhos, esverdeados.

Era engraçado como minha vida tinha transcorrido até ali. Altos e baixos, mudanças bruscas. Depois, toda uma calmaria, uma estrutura, tudo que eu temia: a rotina, o monótono. Tudo que eu amava: a rotina, o monótono. Me dava sanidade. Me deu sanidade.

Lembro do primeiro dia de aula na faculdade. Aquela excitação, os trotes, as correrias. E eu me vestia mal, nossa, como me vestia mal! Dou risada até hoje quando vejo fotos. Menina rebelde de cabelos pintados de vermelho e unhas verdes de canetinha e aquele líquido branco de apagar borrões. E foi isso que você viu, até falou de mim pra sua mãe. Que estava apaixonado. E eu nem sabia quem você era, nem que existia na mesma classe que eu.

E nem sei bem, até hoje, como foi que te percebi. Acho que vi você me olhando, um dia. Escondido atrás dos longos cabelos negros. Aqueles olhos azuis me olhando. Um tanto assustador. Só que sempre fui curiosa, quis saber quem me olhava, porque me olhava, então fui falar com você. Lembro que você engasgou, não conseguiu me responder logo de cara. Fiquei ali rindo e você ficou vermelho. Um homem tão alto, tão grande, com cabelos tão compridos... vermelho. Dou uma risada agora. Saudades desse momento, desse exato momento, em que eu também dei uma risada.

Sua mãe dizia: “essa menina está sempre sorrindo!” Eu achei que as coisas fossem de um jeito, logo que a conheci. Depois percebi que eram de outro. Foi nessa época que eu comecei a não acreditar em primeiras impressões.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Untitled 2

Não escrevi nada no final de semana e agora vou tentar tirar o atraso...


No dia em que meu neto chegou com aquela carta, eu já sabia que era relacionada a você. Uma carta, coisa mais antiga. Você sempre debochou de mim e da minha mania de escrever cartas, dizia que eu já tinha nascido velha. E então escolheu uma carta para me chamar. A carta era da sua filha, ela se apresentava, e dizia que não tinha conseguido achar um telefone pra me contatar, apenas um endereço, e tinha resolvido arriscar. O pai (você) estava muito doente e chamava muito por mim, essa pessoa que ela não sabia muito bem quem era.

Liguei para o número de contato, um lugar no outro lado do país. Sabia sempre que havia uma distância física entre nós, além das distâncias do tempo e das vontades, mas não imaginava tantos quilômetros.

Sua filha me atendeu com voz amável e cansada. Conversamos um pouco e eu disse que em alguns dias, estaria lá. Aí. Iria ver como você está.

E como você está? Fiquei pensando. Velho, claro. Como velha estou. Enrugado, cabelos brancos, será? Os olhos ainda muito azuis, certeza. O que me lembra um outro par de olhos azuis que há muito se foi. Vocês dois nunca me olharam da mesma maneira, mas eu olhei para os dois com os mesmos olhos. “Seus olhos”, vocês dois me disseram, em ocasiões diferentes. “Nunca vi nada igual”. E o que havia de tão especial neles, além daquela cor esverdeada de erva mate? Nada. Tudo. Amor.

Fiquei contemplando a carta da sua filha enquanto arrumava a mala. O que levar? O que vestir? O que dizer? Tantos anos. No entanto, aquela sensação de que o tempo em que estivemos separados era nada. Talvez essa seja a essência do amor: a capacidade que este sentimento tem de apagar o tempo, encurtar as distâncias e apaziguar as diferenças.

Meu neto não entendeu nada. Meu filho, menos ainda. “Mas vai viajar porquê?”. Um amigo, rever um amigo. “Mas que amigo?”. Sempre foram muito ciumentos, iguais ao pai e avô. Meu marido, meu amor, minha saudade. Era um ciúme carinhoso, não uma coisa possessiva, abusiva. Um cuidado, um afago, um medo de perder que beirava o infantil.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

NanoWrimo 2012 - Untitled 1

Vou tentar de novo. O NanoWrimo é um projeto no qual você tem um mês para escrever um livro. Ano passado eu entrei, mas não escrevi quase nada. Esse ano vou começar do zero, no dia 1.

Untitled

Seu rosto como um sonho. Um sonho vívido. Os anos passam, eu continuo tendo o mesmo sonho. No sonho, você fala comigo. Eu não escuto. Só tenho essa visão, clara, nítida, do seu rosto, você sem camisa, gesticulando, uma expressão neutra. Na beira da praia.

Esse rosto gravado na minha retina. Eu consigo te descrever em detalhes, mesmo aqueles que estão diferentes. Você está mais velho. Eu estou mais velha. Mas o impacto do teu rosto ainda é quase o mesmo.

Eu tinha que começar a contar essa história desde o começo. O problema é que não sei bem quando ela começou. As lembranças se misturam, confundem. Lembro de você parado a me olhar. Lembro de que gostei de você porque tínhamos lido o mesmo livro. Antes daquela informação, achava que você não tinha cérebro. E nem te achava bonito. Depois ganhaste uma beleza imbatível, aquela beleza que nasce do amor.

Beleza que permanece, não importa o quanto eu te olhe. Não vai embora. É perene. Mas é sonho, nada mais do que sonho. Onde você está? Eu não sei. Sei que um dia a vida decidiu que nossos caminhos haviam de separar-se, serem diferentes. Um no mar, outro na terra. Porque as nossas almas desejavam coisas muito diferentes, e não tínhamos nada, nada além daquele livro, em comum.

O amor é assim, engraçado. Tragicômico.

Um dia fomos ver uma cigana que lia as palmas das mãos. Ela disse que tínhamos um carma juntos. Coisa de vidas passadas. Eu acreditei. Sempre acredito nessas coisas. Você riu. Não sei se acreditou. Fato é que, mesmo sem nada em comum, passamos tanto tempo juntos que cheguei a pensar que não nos separaríamos, embora desde o começo soubesse, bem lá dentro, que esse dia chegaria.


quinta-feira, 9 de agosto de 2012

1782


Em 1782 uma feminista britânica escreveu uma obra falando sobre os direitos das mulheres. Fazem "apenas" 230 anos. Muita coisa mudou e melhorou, claro, nesses últimos 230 anos. Mas me questiono se Mary Wollstonecraft estaria satisfeita com o rumo que as coisas tomaram. Sob certos aspectos, me parece que as mulheres de outrora eram mais politizadas do que as de hoje. Posso estar errada, claro. Pode ser exagero, quase certamente.

Mas ainda assim não me conformo com o surgimento de "musas" como as tais "mulheres-fruta", "ex-latinetes" e quetais. O que dizia Mary? Que as mulheres não eram inferiores aos homens, apenas pareciam ser, porque não recebiam educação. E educação é que é sempre o problema, né? Aliás, a falta de. Problema maior em nosso país e persistente. Incrivelmente persistente.

Provavelmente essa falta de educação que ainda permite que outras coisas persistam, como a desigualdade entre as pessoas (sexo, cor, religião, opção sexual...), violências etc. Triste, muito triste. 

No entanto, como boa otimista que sou, eu acho que o recrudescimento de propagandas de tv machistas e outras ações do gênero não passam do último suspiro do mouro. Tudo que está morrendo, luta para não morrer. Algumas pessoas vão lembrar de como foi quando surgiram o Código do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Choradeira, ranger de dentes, empresas que não queriam colocar data de vencimento em seus produtos, pais revoltados porque não podiam mais bater nos filhos... a coisa ainda está longe de ser perfeita mas, desde então, melhorou muito, e o básico dessas legislações vem sendo cumprido.

Penso que o mesmo está acontecendo agora com a implementação da Lei Maria da Penha: os últimos bastiões do machismo arraigado estão furiosos, mas eles também hão de ser vencidos. O importante é que as pessoas falem a respeito, debatam, saiam às ruas. A marcha das vadias, na minha opinião, é movimento importantíssimo de mudança, de fazer as pessoas pensarem. Porque o maior problema, também, e desde sempre é: as pessoas não pensam.

Otimista como sou, acredito que logo passem a pensar. Amén, oxalá, em nome de todas as mulheres que foram queimadas vivas literalmente e não literalmente em prol dos direitos não só das mulheres, mas pela igualdade de todos.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Nós e as vacas


Aparentemente, toda mulher já foi ou um dia será... uma vaca. Eu confesso que nunca entendi essa coisa de chamar homem infiel de cachorro (porque cachorros, os bichos, são fiéis), tampouco de chamar mulheres desagradáveis de vacas, quando as vacas (os bichos) são seres amáveis e extremamente úteis, além de muito simpáticos.

Mas o fato é que toda mulher é uma vaca, nesse sentido popular. A vida feminina consiste, basicamente, em esperar. Esperar 9 meses (ou, hoje em dia, anos a fio, postergando até o "melhor momento") para ter um filho, esperar até que o sujeito que diz que te ama decida que realmente te ama e te peça em casamento, esperar mais de ano para casar porque tem que ter a festa dos sonhos, esperar até "estar pronta" para ter sua primeira vez, esperar o reconhecimento profissional que nunca chega...

Se você não espera, se você vai atrás, se você decide pelos outros, se você decide por você... você é uma vaca. E se você espera, não vai atrás, não decide... você também é uma vaca.

Tudo o que você faz ou deixa de fazer pelos outros te transforma numa vaca. Nós sempre somos as últimas nas nossas listas de prioridade, porque é errado uma mulher colocar-se em primeiro lugar. 

Eu não estudei pra ser faxineira. E também não estudei pra ser boneca inflável. Nenhuma das coisas que eu já fiz na minha vida eu fiz com o intuito de virar objeto. Ao contrário, sempre quis ser uma pessoa. Não uma vaca, esse animal nobre que dá leite, carne, couro e até os ossos (não de maneira voluntária, claro). Só que tem muitas vezes nas quais sinto que sou deliberadamente tratada como um objeto, uma coisa. 

E quando me revolto com isso sou tachada de... VACA. Acho que vou assumir minha natureza bovina e ir pastar onde eu achar uma grama mais verde.