sábado, 27 de setembro de 2008

Visão além do alcance


No dia em que ele me enxergou, eu vi que não havia mais nada para nós. No dia em que ele finalmente me enxergou, eu o vi, e ele já não significava nada para mim.

E ele me enxergou, ele viu tudo, ele leu minha alma, ele falou, falou, falou, ele me conhecia por inteiro, ele me descreveu em detalhes e nuances, enquanto eu chorava e pensava: já não há mais nada, essa história acaba aqui.

Ele me desenhou com palavras, me mostrou meu espírito, me disse que meus olhos eram estrelas a alumiar a escuridão da vida dele. E eu pensando: não mais, não mais. Teu sorriso ilumina uma sala, uma casa, uma rua, uma cidade, uma vida. E eu só pensava: todo esse amor para nada, todo esse amor para nada e aquilo a me doer e me doer e me doer, e o pranto era quase como um soco vindo de dentro, era quase como uma convulsão, uma quase violência do corpo contra si.

E quando ele se calou, levantei-me e saí, esperando que o vento levasse aquele peso embora, levasse aquela tristeza embora, levasse aquele nó da minha garganta, pois não havia nada a ser dito. Não mais.

Sentia minhas pernas pesadas e os passos arrastados. Parecia que andava na neve. Como seria andar na neve? Nunca vi neve, mas meu coração estava gelado como um floco de neve. Há algo de belo na tristeza, há algo de verde na tristeza, verde de esperança. Mas naquele exato momento, não havia nenhuma esperança em meu coração, apenas o frio e a tristeza do frio e de saber que amar tanto quanto eu tinha amado não queria dizer nada, não me trouxe sequer um alento de felicidade, uma chama fraca, não, apenas o vazio do frio.

Onde ela vai? Porque me deixa? Agora que eu disse tudo, tudo, tudo o que eu sempre quis dizer? Porque ela me deixa sabendo que eu a amo tanto? Porque eu não consigo dizer nada nem fazer nada? Porque minha voz não sai, eu não me mexo, eu não consigo, eu não consigo, não vá! Por favor não vá.

Sempre é tarde demais. Sempre é tarde demais. Quando enxergamos verdadeiramente alguém, talvez seja tarde demais.

"E para lá desta corrente que me limpa, como se não fosse luz e fosse água, sei que a minha mulher vagueia pela casa. Ainda que os meus olhos não a vejam, eu vejo-a. Pensa. No que pensas, mulher? Quem é o teu rosto? E não há um silêncio que me responda. Só o silêncio onde não me entendo, onde não a ouço. Só um silêncio de esquecimento e indiferença e silêncio. Distante deste tubo de sol e junto da minha pele, vagueia pela casa, talvez perdida, talvez segura do que sabe. Preciso dela. Não a conheço" - José Luís Peixoto em Nenhum Olhar.

(Originalmente publicado aqui)

Um comentário:

Unknown disse...

Desconcertante.
beijos

faxina