quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O Homem que vivia na cabine telefônica

Escrevi em 2001.

O sol brilhava esplendoroso no alto dos 7 céus sob a cidade mágica. Cada céu era como um filtro. Como havia apenas um sol, a luz perdia um pouco do seu calor ao passar por cada um dos céus. Quando atingia os telhados dourados das casas da cidade mágica, estava praticamente sem calor, e os dias da cidade mágica eram sempre frios. Raios de sol gélidos batiam suavemente em seus olhos. Pássaros cantavam. Uma menina passou correndo, as tranças voando com laços de fita carmim.

No meio de tudo isso, ele acordou.
Abriu os olhos lentamente. A claridade cegando-o. Sem camisa e sem sapatos, encolhido num pedaço de papelão, ele estava deitado no chão de uma cabine telefônica em uma movimentada avenida. Alheio ao movimento externo, ele permaneceu na mesma posição, estendeu a mão para fora da cabine, como se quisesse sentir a temperatura.
Pessoas passavam e olhavam com pena para aquele homem encolhido na cabine telefônica. Alguém provavelmente pensou: como alguém pode chegar a este estado? Como viver assim?
Alheio, ele piscava os olhos, a claridade ofuscava-o.

Um dia decidiu que ia fechar os olhos do lado de fora e abrí-los para dentro. Tudo vermelho. Uma luz... e ele pôde, finalmente, enxergar a si mesmo.

Primeiro viu o sangue... quanto sangue dentro dele mesmo. Pensou que talvez, se sangrasse, pudesse ver-se com mais clareza. Na escuridão de fora, procurou por uma faca. Lentamente o líquido quente escorreu-lhe pelos pulsos. Pingos no chão. E tudo foi ficando mais claro. Uma luz muito forte. Abriu lentamente os olhos e viu a si mesmo. Olhos nos olhos. Seus dedos procuraram seus dedos, e eles se encontraram. Que estranha sensação a de tocar a si mesmo.

O sangue pingava no chão. O homem, em pé, estendia os braços e as mãos e os dedos, e parecia tocar alguma coisa. Os olhos fechados.
O corpo foi caindo, caindo... Olhando para si mesmo, tocando-se a si mesmo, ele percebeu...

...percebeu sua própria fluidez e, então, o coração se partiu em dois, o amor finalmente escapou daquela prisão. Pela primeira vez era livre, livre, e isso era uma sensação indescritível.

Os médicos colocaram o corpo inerte na maca. Muitos tubos, bandagens, agulhas. "Mais uma merda de um suicida. Que merda de trabalho"! A palavra suicida ecoou-lhe na mente. Não era nada disso. Mas agora estava livre... 

Acordou. Abriu os olhos lentamente. A visão turva. Piscou. Piscou. O forro de gesso do teto começou a ficar nítido. O ambiente estava bem iluminado, talvez iluminado demais. Tudo tão branco, seus olhos estavam meio ofuscados. Olhou para o braço direito. Bandagens no pulso. Uma tira de couro em volta do braço. Tentou movê-lo. Estava amarrado.

Olhou para o braço esquerdo; a mesma coisa. Tentou mexer as pernas, também estavam amarradas. Ficou olhando para o teto.
O forro de gesso branco foi se liquefazendo... agora parecia um lago branco sobre sua cabeça. De repente, um trovão. Começa a chover. Chove do chão para o teto. Ele pode ver gotas de chuva fazendo pequenas ondulações no lago branco sobre sua cabeça.
Logo descobre-se flutuando entre seu próprio corpo e o lago branco. Está livre. Poderia tocar aquele líquido branco? Qual seria a sensação? Estende a mão. A chuva continua subindo, forte. Lentamente seus dedos tocam o lago. Tudo escurece.

Noites em branco. Não lembrava mais de seus sonhos como antes. Ou não sonhava mais. Não podia saber. A voz que lhe falava aparecia em raras ocasiões, mas era o bastante para lhe perturbar. Estava passando por uma cabine telefônica quando sentiu alguém lhe tocar o ombro, mas não havia ninguém. O telefone tocou. Pensou em atender, mas continuou andando. A curiosidade lhe corroeu durante o resto do dia. Voltou à cabine após o trabalho. Mas desta vez o telefone permaneceu quieto. A cabine lhe observava do mesmo modo como ele a observava. “Acho que nunca mais vou ser normal”, pensou. Foi para casa.

Encolhido na cabine telefônica pensou em escrever suas memórias. Pensou em explicar como chegara ali, porque havia desistido de tudo para escutar uma voz. Porque esperava, e esperaria para sempre, por um telefonema dela. Mesmo sabendo que ela se fora. Não estava ali, nem nunca estivera. Claire, aquela a quem ele nunca amara.

“O amor foi a minha perdição. Mas salvo minha alma todos os dias esperando para ouvir a voz dela. Um dia ela me chamará. Um dia ela me chamará”.

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