Querido Daniel,
mais um dia cinza nessa cidade.
Tu sabes bem como odeio dias cinzas.
Ontem à noite, antes da chuva, só eu mesma para não perceber a iminência dela. Aquele ar pesado de umidade, e um calor frio que só existe nessa cidade, gostaria de poder te explicar melhor, mas não consigo.
Terias de vir até aqui e pegar uma dessas noites úmidas de maio, assim saberias do que estou falando.
Agora é tempo de mofar as coisas. Minha geladeira tem um cheiro ruim, mas sinto uma enorme preguiça de jogar fora as poucas coisas que estão lá dentro.
Preciso te contar que não estarei aqui no próximo feriado. Já tenho planos, finalmente passarei ao menos perto do mar. No frio, mas perto do mar. E perto de um rio, também.
Pretendo beber vinho e falar todas as bobagens que não tenho dito nos últimos tempos, quiçá, nos últimos anos.
Essa fase de não-sentimento que tenho vivido é boa, mas ao mesmo tempo intrigante.
Ouço aquelas músicas que me arrancavam lágrimas quase com desdém. Mas não deixei de gostar delas.
Preciso te dizer, também, que não há nada a ser perdoado, e que está tudo bem. Sabes o quanto gosto de ti (ao menos espero que saibas) e, realmente, não terminaria nossa amizade por qualquer bobagem, ainda que essa bobagem tenha sido a que eu mais detesto: o silêncio.
Enfim, quero que leias minhas cartas e me responda em pouco tempo.
Mal posso esperar pela despedida no aeroporto! Aquela que te contei na minha carta anterior. Porquê? Realmente não sei, mas sinto que é importante.
Ano passado tive péssimas despedidas. Uma na qual eu quis arrancar lágrimas de mim mesma e não consegui. Fiquei sentada a esperar o ônibus do lado de fora do aeroporto. Parara de chover, e o sol voltava aos pouquinhos. Aquilo me dizia algo.
Algo como "pare de chorar". Eu realmente não consegui. Talvez eu consiga chorar de novo, por algum verdadeiro bom motivo, daqui há algum tempo.
Too damaged, me disse o Carlos. A mesma coisa que sempre me diz a minha irmã.
Somos de um cinza flutuante, ele insistiu, quando eu disse que já não lembrava mais como era ser criança.
Não acho que eu seja assim tão "estragada", mas de qualquer forma, não importa.
De alguma maneira doida nós nunca deixamos de ser crianças, ainda que não nos recordemos da sensação. E há um momento, apenas um momento, dentro de uma sucessão de vários eventos desafortunados, no qual uma criança deixa de ser criança, e passa a ser um adulto "estragado".
Aquele momento fica congelado na retina, e ao ver aquele rosto passar do lado de fora, e olhar bem nos meus olhos, eu percebi que está lá, na retina dele, e não pude deixar de sentir pena. No fundo, talvez pena de mim mesma, por pior que isso seja.
Fato é que não consigo enxergá-lo somente como o adulto que ele é, vejo aquele rosto infantil, aquele da fotografia, e me entristeço, por breves momentos. Aquela criança merecia respeito. O adulto que ele é, sinceramente, não merece nada.
Mas chega das minhas divagações... nem sabes mais de quem te falo.
Deveria contar-te de mim.
Mas isso fica para outra carta.
Um beijo,
C.
5 comentários:
Não sei o Daniel, mas eu estou adorando essas cartas. Até porquê as vezes parecem cartas que eu deveria também estar escrevendo, tamanha a semelhança de sentimentos. Bjs
Daniel é o interlocutor imaginário. Essas cartas são mistura de ficção e realidade. Tenho gostado de escrevê-las. Quando tu vens pra Poa de novo?
Bjs
Daria um livro e tanto Vica: "Cartas a Daniel". Prometo ir no lançamento ;).
me chamou a atenção as fotos de cada carta!
não, não li todas ainda, começo a saga agora..hahaha!
realmente é uma loucura ler sob efeito de vinho..(:
mas deu pra ver que tu tem talento com as palavras!
me chamou a atenção as fotos de cada carta!
não, não li todas ainda, começo a saga agora..hahaha!
realmente é uma loucura ler sob efeito de vinho..(:
mas deu pra ver que tu tem talento com as palavras!
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