quinta-feira, 16 de junho de 2011

Carta da Cléo I

Querido ..., 
Tinha pensado em te escrever uma carta vindo para o trabalho agora de manhã.
Era uma carta linda, e-mail, o que fosse, que começava com uma frase ótima que eu esqueci.
Eu queria te mandar alguma coisa, acho que era uma música. Não importa, era apenas uma desculpa para tentar falar contigo, por qualquer razão.
O que eu queria te dizer é que tu me moveste.
Li um livro que teve enorme impacto sobre mim, quando eu tinha uns 15 anos. Chama-se Cleo e Daniel, talvez tenhas lido?
Quando eu o li, foi emprestado de um amigo. Agora que tenho 30, decidi comprar o livro e lê-lo outra vez.
Ontem à noite, porque ainda estou lendo um outro livro, peguei Cleo e Daniel e abri uma página ao acaso, pensando em ti, pensando em aprender a falar francês, e havia uma frase em francês, bem no meio da página:

 Évidemment. Et alors?

O que se traduz por (eu acho): evidentemente, e agora?
E agora? Bom, acho que devo começar minhas aulas de francês logo.
O que eu quero dizer é que eu quero agradecer-te, por ter algo em você que me tocou, que me moveu.
O que que quer que seja isso dentro de você e que eu fui capaz de ver, aparte da tua enorme necessidade de ser cuidado, que sempre me atraiu aos homens.
Claro que não disseste: por favor, cuide de mim. Eu apenas reconheci isso em ti, porque geralmente me atraía. Mas não foi isso. Foi outra coisa. Olhos que reluzem, talvez... quem sabe?
Não sou capaz de cuidar de ti. Mas posso, e devo, cuidar de mim mesma. E disseste que não podes ser cuidado, porque já foste muito machucado antes e não suportas mais o toque. Ainda que seja carinho. Mas talvez só por agora.
E está tudo bem. Pra ti e pra mim. Mesmo que a gente perca o contato. E tu não ouças as músicas que te mando. Mesmo que nunca leias isso, ainda que eu acredite que de alguma maneira estamos um na vida do outro. Para estar.
Por mais bobo ou ingênuo que isso possa parecer.
Amor,
Cléo.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Sim, nós nos amávamos. Onde foi parar esse amor?

AMAR.
O VERBO.
A VIDA ORIENTA-SE EM FUNÇÃO DA LINGUAGEM OU SERÁ A LINGUAGEM QUE VISA EXPRIMIR A VIDA?
ACREDITO NA PARTILHA, NA INTERAÇÃO.
ENTÃO, A VIDA IMITA A LINGUAGEM E A LINGUAGEM IMITA A VIDA.
AMAR.
A ORIENTAÇÃO.
O VERBO AVANÇA POR ENTRE CASCATAS, FLORESTAS, OU PELO EÓN E A BRUTALIDADE DAS CIDADES.
O VERBO CARREGA EM SI A PUREZA.
E AQUELE QUE O ESCREVE DEVE SENTIR A LUZ DAS COISAS PURAS, A ESSÊNCIA LÍQUIDA DO MUNDO.
AMAR.
PORQUE SE AMA NOS DIAS, NAS SEMANAS, MESES E ANOS.
PORQUE O SER FOI FEITO PARA AMAR.
E EXPRIME O AMOR NA LINGUAGEM.
EXPRIME O SEU PATHOS NO CÓDIGO INTELIGÍVEL DAS PALAVRAS.
EU PODIA VIVER NO MEIO DE FRASES.
EU PODIA VIVER NO MEIO DO MUNDO.
EU PODIA VIVER NOS TEUS LÁBIOS,
NO TEU OLHAR,
EM CADA UM DOS TEUS MOMENTOS SEM MIM.
PODIA VIVER AÍ.
PRESSINTO-TE.
PORQUE O VERBO CONJUGA-SE EM MIM E NO MUNDO QUANDO ESTÁS PRÓXIMO.

(5/5/06)

terça-feira, 14 de junho de 2011

Carta a Daniel 22

Querido Daniel,
eu te convidei a viver os nossos sonhos, tenho certeza de que aquele sonho específico não era só meu, era algo que criei com o material que encontrei em nossas mentes e corações. Eu te convidei, te convidei!
Me negaste, abandonaste, fizeste pouco de mim.
Eu não sei onde eu estava com a cabeça quando te fiz aquele convite.
E agora? Onde estão os meus sonhos? Aqueles que eram só meus? Que fim tiveram? Tiveram fim?
Nem procuro mais. E a casa está vazia, mas cheia de lixo. É tanto por limpar que eu nem sei por onde começar.
E tu estás aí, sorrindo, com essa tua cara feia. Quem pensavas que eras?
E onde estava eu com a cabeça, Daniel? Onde estava eu com a cabeça quando imaginei tudo aquilo? Perdida numa dor, perdida numa nuvem de cinzas, perdida, perdida.
Agora sei onde estou, mas não sei onde está todo resto. A dor é só no corpo e o espírito é vazio e pesado ao mesmo tempo. E sinto saudades de coisas que não vivi e de pessoas que existem só na minha imaginação.
Não te deixo mais beijos, Daniel.
Nem sei se volto a te escrever.
Morra, Daniel. Morra.
C.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Vestido

As mulheres têm a agilidade de mudar de alma como mudam de vestido. As mulheres podem vestir-se como quiserem. Agarram-se à moda como os homens agarram-se às bandeiras. São mais espertas. As bandeiras nunca dão independência aos homens que as defendem, as bandeiras enterram os homens. O mundo está carregado de cemitérios feitos do amor às bandeiras. No miradouro de São Pedro de Alcântara, com a Lisboa pombalina adormecida a meus pés, acabo de descobrir que o individualismo foi inventado pelas mulheres.

- Os Íntimos, p. 186. Inês Pedrosa, Alfaguara, 2010.